Sucessão presidencial

no Brasil: o viés religioso nas eleições de 2010

Elza Galdino Advogada

Florianópolis, Santa Catarina, Brasil E-mail: elzagaldino@uol.com.br

Recibido: Junio 20, 2011, Aceptado: Febrero 18, 2012

Resumen

O Brasil é, sabidamente, um país laico. Uma República laica. Desde 1891, por decreto do presidente da então recentíssima República (instalada em 1889), não há religião oficial no País. Inegável, entretanto, a influência da Igreja Católica Apostólica Romana sob a qual teve início à exploração do Brasil. Observa-se, durante a campanha eleitoral 2010 que a pauta de projetos, programas e propostas vai-se deteriorando pouco a pouco esgarçando-se no que diz respeito às necessidades básicas dos brasileiros até adquirir um caráter meramente “moral”, no pior sentido da expressão.

Palabras clave: República Laica, Igreja Católica, campanha eleitoral, opinião pública.

Presidential Succession of Brazil:

The size of Religion in the 2010 elections Abstract

Brazil is known, a secular country. A Republic is non-clerical. Since 1891, by Decree of the President on the beginning arrangements (installed in 1889), there is no official religion in the country. However, the Undeniable influence of the Roman Catholic Church under which began the exploitation of Brazil. It observed, during the election campaign that the Agenda 2010 for projects, programs, and proposals will be deteriorating little by little union sure as regards the basic needs of Brazilians to acquire a character merely "moral", in the worst sense of the term.

Keywords: Secular Republic, Catholic Church, electoral campaign, public opinion.

A proposta deste ensaio é apresentar a visão não aprofundada de uma mera observadora laica, cidadã brasileira, votante, preocupada com os rumos deletérios que a política brasileira vem ganhando a cada pleito eleitoral. Ao contrário do que se espera; o exercício democrático do voto não tem acrescentado novos contornos à liberdade, pilar do regime democrático.

O fato ficou evidenciado ao eleitor circunscrever a livre escolha de postulantes à presidência a um único fator, qual seja o posicionamento que os candidatos possam adotar em vista da religião que professam. Mais grave ainda é a indiferença do eleitor à submissão dos candidatos à força eleitoral de correntes religiosas que os comprometem previamente. Nesse passo a laicidade é desprezada e o país envereda em marcha acelerada rumo ao atraso.


O Brasil é, sabidamente, um país laico. Uma República laica. Desde 1891, por decreto do presidente da então recentíssima República (instalada em 1889), não há religião oficial no País.

Inegável, entretanto, a influência da Igreja Católica Apostólica Romana sob a qual teve início à exploração do Brasil. A chegada dos portugueses se deu sob os símbolos da Coroa e da Cruz, e a fatos históricos não de deve negar a repercussão, boa ou má, que adquiram.

Estamos, é preciso atentar, no século 21, e as eleições presidenciais no Brasil se dão em 2010, portanto 510 anos –cinco séculos– após a implantação do monopólio católico.

Historicamente é lapso de tempo a ser considerado, e o seria se não fosse realimentado rotineiramente o pensamento retrógrado que domina a chamada moral que as igrejas em geral disseminam, sob o império do medo do castigo na vida eterna.

Observa-se, durante a campanha eleitoral (cuja propaganda tem início em 6 de julho para dois turnos de votação, em 3 e 31 de outubro de 2010), que a pauta de projetos, programas e propostas vai-se deteriorando pouco a pouco, esgarçando-se no que diz respeito às necessidades básicas dos brasileiros até adquirir um caráter meramente “moral”, no pior sentido da expressão.

O aborto torna-se então questão central, e o posicionamento de cada candidato sobre o tema se agiganta a ponto de se tornar o fiel da balança.

A revista Veja, veículo semanal de maior circulação no Brasil, [1], dedica uma capa emblemática à contradição expressa pela candidata melhor posicionada nas pesquisas, Dilma Roussef, sobre o aborto. Em 29 de setembro de 2010 a declaração é: “Eu, pessoalmente, sou contra. Não acredito que haja uma mulher que não considere o aborto uma violência.” Já em 4 de outubro de 2007 o pensamento era diverso: “Acho que tem de haver a descriminalização do aborto. Acho um absurdo que não haja.”[2:capa] As declarações são diagramadas de modo que a contradição se agigante: como em uma carta de baralho as fotos da candidata com os textos ao lado se contrapõem: à direita ao alto da capa, e à esquerda, abaixo.

Analisada friamente não se pode dizer que as duas declarações são opostas; pode- se, talvez, dizer que houve focos diferentes nas duas abordagens. É possível ser contra o aborto, entendê-lo como uma forma de violência, e ainda assim concordar com sua descriminalização. A imagem, contudo, era forte o suficiente para fazer crer que a candidata mudava de convicções ao sabor dos ventos da campanha, ou seja, a depender dos apoios que determinadas igrejas lhe concediam ou não.

O Partido dos Trabalhadores –PT–, partido ao qual é filiada, discutindo o tema aborto em 2007 publicou Resolução na qual propugna pela:

“Defesa da autodeterminação das mulheres, da descriminalização do aborto e regulamentação do atendimento a todos os casos no serviço público, evitando assim a gravidez não desejada e a morte de centenas de mulheres, nas suas maiorias pobres e negras, em decorrência do aborto clandestino”. (Resolução do 3º Congresso do PT, de 2 set. 2007). [2:62]

Acuado por parte da imprensa e da opinião pública, o presidente do Partido PT declara que “A questão de aborto nunca esteve no programa de governo da Dilma, portanto não faz sentido você dizer que vai retirar uma coisa que não existiu. Ela é pessoalmente contra o aborto e não vai propor nenhuma modificação na legislação relativa a isso.” José Eduardo Dutra. [2:63]

A propósito de propor modificações na legislação, é oportuno mencionar que o então presidente Lula, em seu primeiro mandato, firmou compromisso em carta à CNBB –


Conferência Nacional dos Bispos do Brasil–. “Em agosto de 2005, em meio aos episódios das denúncias de corrupção envolvendo o Partido dos Trabalhadores e seus principais dirigentes, o Chefe do Executivo encaminhou carta à CNBB –reunida na 43ª Assembléia- Geral– afirmando que pela sua ‘identificação com os valores éticos do Evangelho’ e pela fé que recebeu de sua mãe, não tomará ‘nenhuma iniciativa que contradiga os princípios cristãos.” [3:55]

Ao final da dita Assembléia-Geral documento emitido pela CNBB manifesta “repúdio” e “inquietude” diante de iniciativas do Executivo, tais como: “distribuição de preservativos, além de produtos abortivos como DIU e as assim chamadas ‘pílulas do dia seguinte’”. E relembra a carta recebida na qual o presidente, ainda, “reafirma sua ‘posição em defesa da vida em todos os seus aspectos e em todo o seu alcance’ [...]”. [3:55]. Cinco anos passados, a situação de comprometimento do então presidente pouco ou nada se tinha alterado. Aqui com a agravante de que a candidata à sucessão era escolha pessoal do próprio Lula, conforme largamente apregoado pela imprensa e por ele mesmo, em discursos e entrevistas. Se a candidata representava a continuidade ou, ainda como queriam alguns, era um “Lula de saias”, natural que a grande massa eleitora do Partido dos Trabalhadores esperasse o mesmo posicionamento conservador e alinhado com a igreja católica.

É preciso, aqui, remontar às origens do Partido dos Trabalhadores, o chamado “cenebebismo” ou “pré-petismo” [4:329], “instrumento político-religioso e partidário do sindicalismo anticomunista do ABC1 {...} que seqüestra para si, como discurso político- religioso, os fundamentos e vozes reformistas, éticos, patrimônio até então da frente democrática agrupada no PMDB.”. [4:329]. O PMDB, diga-se, é resultado de diversos

segmentos oposicionistas que, à época do regime militar e em vista do bipartidarismo imposto, puderam abrigar-se sob uma única sigla. No diagnóstico de MIR, a CNBB percebe a excepcional oportunidade de um projeto político ao ver que “Estava no movimento sindical do ABC {...} a base de um partido político católico reformista.” [4:329].

A trindade clerical-sindical formada pelo Partido dos Trabalhadores/movimentos sociais/Central única dos Trabalhadores conflui para “um só projeto político-religioso no final dos anos 1980” [4:347], com dois objetivos declarados: “retomar a centralidade católica no país e tornar o catolicismo (popular e de massa) um fator político estratégico e operante dentro do Estado brasileiro.” [4:347].

Nesse passo “O PT, sem as organizações sociais católicas vinculadas ou apoiadas pela CNBB, sem o discurso salvacionista, não teria chegado a se tornar uma alternativa de poder real.” [4:347].

O salvacionismo; ressalte-se, é característico do discurso do PT, que fez aderir à pele e à figura indiscutivelmente carismática de Lula o epíteto de “Salvador da Pátria”. Em seus dois mandatos (2003-2006 e 2007-2010) o presidente tentou ampliar para nível global este apodo, tendo se imiscuído em questões internacionais às quais não foi chamado e para as quais lhe faltava o arcabouço de conhecimento e poder necessários para obter algum resultado.

Tanto ganhou importância o contexto de messianismo que alguns intelectuais brasileiros saíram o público para definir Lula como "antimessias" e o "oposto do salvacionismo", opinião da professora de filosofia da USP, Marilena Chaui, de Otávio


Velho, antropólogo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e Irlys Barreira, antropóloga da Universidade Federal do Ceará e do NUAP – Núcleo de Antropologia da Política–. [5]

A formação populacional brasileira é de maioria católica. Este é, no entanto, um “catolicismo à brasileira”, que não dispensa os passes do espiritismo kardecista ou, mais explicitamente, convive com os rituais do candomblé na Bahia. Talvez por esta pouca ortodoxia outras religiões venham ganhando espaço entre os brasileiros, e exercendo seus poderes terrenos unindo-se em bancadas específicas nas casas legislativas.

Qualquer viés religioso no trato da coisa pública; entende-se, é descabido e perigoso. O manto da divindade tolda a discussão das questões humanas porque encobre a universalidade de tais questões. Somos, antes de tudo e por tudo, humanos. Depois disto, e somente depois disto, é que somos caracterizados por detalhes como sexo, raça, religião. Tais caracteres não podem, e não devem; nortear políticas públicas que obrigatoriamente terão aplicação geral, e que tratem de direitos humanos fundamentais, entre eles vida, saúde e trabalho, por exemplo.

Em 1985 Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, opositor ao regime militar que esteve exilado no Chile, era candidato à prefeitura de São Paulo. Em entrevista cedida na época ao jornalista Boris Casoy, ao ser indagado se acreditava em Deus respondeu que julgava a pergunta desnecessária, e protestou dizendo que o jornalista havia se comprometido a não fazê-la. Foi o suficiente para espalhar-se o mito do ateísmo do então candidato, fato que, segundo especialistas, a fez perder uma eleição dada como promissora. Tudo aconteceu, relembre-se, em São Paulo, uma cidade tida como cosmopolita, mas com forte imigração italiana e grande predominância de nordestinos, tradicionalmente católicos.

Um quarto de século depois, a campanha de 2010 parece carregar esse espectro assustador, e os candidatos aceitam como pauta principal a questão religiosa, ainda que travestida pela discussão sobre o aborto.

O candidato José Serra, contemporâneo e membro do grupo político de Fernando Henrique, fez imprimir material de campanha com a frase “Jesus é a verdade e a justiça”.

O uso da religião chegou a tal ponto na campanha que até mesmo parte da imprensa resolveu propor um basta, como Ricardo Setti, da Veja: “Estamos a 13 dias da eleição presidencial, e é hora de dizer chega. Chega de deixar a questão do aborto, tema social, médico e moral importante, mas longe de ser um dos grandes problemas nacionais, sufocar debates cruciais sobre o futuro do Brasil. Chega de beija-mão em líderes religiosos. Chega de investigar quem fez o em-nome-do-pai certo ou errado. Chega, sobretudo, de colocar Deus na campanha eleitoral. Deixem Deus em paz também em outros setores da vida do país.” [6]

Argumentando apropriadamente, diz o jornalista: “Como ficam os cidadãos brasileiros de outros credos ou os sem credo? Os judeus, os muitos seguidores de religiões politeístas de origem africana, os budistas, os muçulmanos, os partidários de crenças orientais também politeístas, os agnósticos, os ateus? Deus deve ser reverenciado por quem crê, nos locais apropriados –e deixado em paz– na coisa pública. Deixado em paz, sobretudo, durante campanhas eleitorais, onde –aí sim– Seu nome é invariavelmente usado em vão. [7]

O jornalista tinha razão no seu desabafo. Afinal, desde julho de 2010 a imprensa já noticiava a disputa pelos votos dos evangélicos, representantes de 25% do eleitorado brasileiro que é, no total, de 135 milhões de pessoas. [8] Conciliar convicções íntimas com declarações públicas não é tarefa simples, e os candidatos se deixaram apanhar na armadilha, quando deveriam simplesmente, inteligentemente e democraticamente ter excetuado do debate os aspectos personalíssimos de cada um.


Inegável que o Brasil tem base católica, e continua a ser chamado “a maior nação católica do mundo”, título do qual não parece caber qualquer orgulho, visto que a questão da religiosidade tem sido fator de atraso e de vários outros males, como em outros países.

Não se podem apagar as marcas sob as quais o Brasil teve sua exploração iniciada, em 1500. Mas, em pleno século 21, é preciso que se eleja um caminho para seguir.

No concerto das nações a harmonia não acontece por acaso, e o viés religioso se afigura ao ressoar de címbalos que retumbam na hora em que a pauta traz inscrito um suave solo de flauta doce: incorreto, inoportuno, inconveniente, assustador, desagradável, desarmônico, insubordinado, desavisado, distraído, extemporâneo, descompassado.

A origem comum da humanidade, a certeza de que o planeta Terra é um grande e único bloco habitado por esta espécie humana igual, expõe a necessidade premente de se buscar, encontrar e reforçar pontos de harmonia a convergência nas questões maiores. E a necessidade, tão urgente quanto, de se eliminar pontos de divergência nas questões de menor repercussão.

É indispensável também que se excluam das relações mundiais os pontos de divergência nas questões peculiares que devam ser protegidas pelo conceito de soberania – soberania esta irrevogavelmente circunscrita aos princípios irrenunciáveis que são os direitos humanos.

A consciência de que as conseqüências da nova ordem repercutem em toda a humanidade e a inegável liberdade trazida e multiplicada pela internet gera seres cada vez mais livres, e cada vez mais comprometidos com aqueles que ainda não o são.

Impõe-se a saída de cena das religiões em geral ao se propor, debater e decidir sobre questões que afetem todos os seres humanos. Que são e serão, em sua generalidade, humanos, antes de serem considerados em suas peculiaridades de raça, sexo, religião ou outros fatores excludentes quaisquer.

 

1 ABC Paulista, Região do Grande ABC ou ABC é uma região tradicionalmente industrial do Estado de São Paulo, parte da Região Metropolitana de São Paulo, porém com identidade própria. A sigla vem das três cidades, que originalmente formavam a região, sendo: Santo André (A), São Bernardo do Campo (B) e São Caetano do Sul (C). Essas três cidades possuíam nomes de santos, dados em ordem alfabética no ato de suas fundações, devido à influência da religião Católica na região, fato este que deu a origem da sigla "ABC" Paulista, a região dos três santos de São Paulo.

Referências

[1] Edição 2220, ano 44, no. 23, 8 de junho de 2011, circulou com tiragem de 1.196.727 exemplares.

[2] Revista VEJA, ed. 2186, 13 out. 2010, capa. Brasil. [Em línea] Dispoñible em:

< http://www.altairgermano.net/2010/10/capa-da-revista-veja-edicao-2186.html >, consultada: junho de 2011.

[3] GALDINO, E. (2006). Estado sem deus: a obrigação da laicidade na Constituição.

Belo Horizonte, Del Rey.

[4] MIR, L. (2007). Partido de Deus: Fé, Poder e Política. São Paulo: Alaúde.

[5] Cariello, R. (2002). Intelectuais vêem petista como “antimessias”. [Em línea]

< http://www.reocities.com/textosdiversos/intelectuaislulaantimessias.html >, consultada: junho de 2011.

[6] Política & Cia. (2011). Chega de colocar Deus na campanha presidencial. [Em línea] Dispoñible em: < http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/chega-de- colocar-deus-na-campanha-presidencial/ >, consultada: outubro 18 de 2011 às 18:11.

[7] [Em línea] Dispoñible em: < http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/chega- de-colocar-deus-na-campanha-presidencial/ >, consultada: junho de 2011.

[8] Eleições 2010: Saiba quais candidatos a presidência as igrejas evangélicas vão apoiar. [Em línea] Dispoñible em: <

http://noticias.gospelmais.com.br/saiba-quais- candidatos-a-presidente-as-principais-igrejas-evangelica-irao-apoiar-nas-eleicoes- 2010.html

>, consultada: junho 20 de 2012.